BBC Brasil
© BBC Cecília chegou a ser dada como morta antes da hora e foi enterrada neste sábado, vítima do incêndio em MG | Foto: Arquivo Pessoal |
Cecília Davina Gonçalves Dias gostava
de plantar, brincar de dar comida para as bonecas e vestir a camiseta do Galo
(apelido do Atlético Mineiro) para então sair pulando pela casa: "sou o
galo doido!", dizia, provocando risadas nos pais, no tio e na avó, com
quem morava - a única criança na casa de gente grande.
"A Cecília podia estar com 40
graus de febre, mas nunca estava triste. Sempre estava alegre, correndo",
disse o pai, Adilson de Almeida Gonçalves, de 25 anos, ao lado do pequeno
caixão da única filha. "A gente vai chorar e sofrer muito, mas só peço
para vocês lembrarem desse rostinho. Só disso. Lembrem a alegria dela."
A menina de 4 anos foi velada e sepultada
neste sábado em Janaúba, cidade no norte de Minas, após o incêndio criminoso na
creche Gente Inocente, que deixou 40 pessoas feridas e matou outras dez - a
décima vítima, Talita Vitória Bispo, de 4 anos, morreu na manhã de sábado.
Cecília chegou a ser dada por morta
antes da hora. O Corpo de Bombeiros de Minas Gerais divulgou sua morte na noite
de quinta-feira, depois que ela teve uma parada cardíaca, e só desmentiu a
notícia na manhã do dia seguinte.
"Nós começamos a arrumar a casa
para o velório, a minha irmã desesperou, e amigos e vizinhos começaram a chegar
para o velório, e todo mundo me pedindo informações pelas redes sociais",
lembra seu tio, o técnico em segurança do trabalho Erick Medeiros Dias. Até que
a mãe de Cecília avisou que estava tudo bem e que ela tinha visto a filha.
"Ela era a alegria de todo mundo
por onde passava. Vai fazer muita falta. Já está fazendo muita falta. Não dá
para acreditar que ela se foi", afirma Dias.
Cecília morreu às 13h15 de
sexta-feira, sucumbindo às queimaduras e ao estrago feito em seus órgãos por
inalar a fumaça tóxica do fogo ateado na creche.
O vigia noturno da creche, Damião
Soares dos Santos, provocou o incêndio durante o horário de recreação creche,
onde estavam mais de 70 crianças. Ele jogou combustível nas crianças, em
funcionários e em si próprio, além de agravar o impacto ao abraçar algumas
crianças.
© BBC Cerca de cem pessoas participaram de enterro de menina de 4 anos que morreu em inc@endio em crache | Foto: Júlia Carneiro |
A BBC Brasil teve acesso às salas de
aula e constatou a dimensão do estrago: brinquedos e livros carbonizados no
chão, parede e pisos tingidos de preto pela fumaça. Tiras de PVC que forravam o
teto estavam caídas no chão, derretidas. Tudo exala um forte cheiro de
queimado. Alguns chinelos e sapatinhos das crianças ainda estavam espalhados
pelo chão.
Um quarto para as bonecas
Todos os alunos mortos na creche
foram velados por suas famílias dentro de casa, muitas vezes madrugada adentro,
como o velório de Cecília.
Seu corpo chegou em casa logo depois
da meia-noite. A família praticamente não dormiu. O movimento de vizinhos,
parentes e amigos começou de madrugada e continuou até a hora do enterro, às
11h30.
O caixão foi colocado no centro de
uma sala de paredes cor-de-rosa, com fotos da menina com roupas também
cor-de-rosa. Seus olhos castanhos arregalados nas imagens fitavam quem chegava.
Cecília morava na casa da avó com
seus pais e seu tio, em uma casa simples no bairro de Rio Novo, perto da
creche, na periferia da cidade. É uma região de baixa renda, com construções de
baixo custo, comércio barato e ruas de terra.
© BBC Menina Cecília que morreu em creche ficava no local em período integral, pois sua família toda trabalhava | Foto Júlia Carneiro |
© BBC Após incêndio em creche, 16 crianças receberam alta na manhã deste sábado | Arquivo pessoal |
Logo na entrada, pilhas de tijolo,
brita e telhas estavam dispostos nas laterais do quintal. A família estava
prestes a começar uma obra para acrescentar três cômodos à casa.
"Ela sempre dormiu comigo e com
a minha esposa, mas a gente ia construir um quarto para ela", conta o pai
Adilson Gonçalves. "Ela estava feliz da vida que ia ter o cantinho dela
com as bonecas."
Rosto perfeito
Todos na família trabalham o dia
todo, e por isso Cecília estava matriculada no período integral. O pai
éfuncionário em uma empresa terceirizada da Ambev, a mãe é supervisora da Avon,
a avó é empregada doméstica.
"Eu estava trabalhando na hora
que aconteceu. Um amigo meu ligou para avisar. Eu corri de volta para casa, mas
ela já estava no hospital", lembra Gonçalves.
O pai viu a filha na manhã antes de
ela morrer, no hospital, dormindo, sedada. "Fiquei feliz. Foi bom."
Ele não chegou a ver os ferimentos. "Ela ficou com as costas muito
queimadas. Mas o rosto dela estava perfeito."
Quase cem pessoas estavam no velório
quando o cortejo estava perto de sair. Lanches e refrescos foram servidos em
uma mesa de plástico no quintal. Um grande toldo protegia as pessoas do calor
implacável do norte de Minas. Chuva, por lá, só a partir de dezembro, dizem os
moradores de Janaúba.
João Alves de Carvalho Filho, pastor
da Igreja Videira, frequentada regularmente pela família, encerrou sua prece
pedindo para todos cantarem uma das músicas preferidas de Cecília, "Meu
Barquinho". A canção evangélica diz: "Não temo mais o mar, pois firme
está minha fé/ No meu barquinho está, Jesus de Nazaré/ Se o medo me cercar, ou
se o vento soprar/ Seu nome eu clamarei, Ele me guardará."
Na mesma hora, a algumas quadras
dali, acontecia o enterro de Yasmin Medeiros Salvino, de 4 anos, que também
morreu na sexta-feira. As duas foram sepultadas em covas lado a lado no
Cemitério São Lucas.
© BBC Pais tinham comprado material para construir quarto de menina de 4 anos que morreu em incêndio | Foto: Júlia Carneiro |
Adilson conta que ele e o resto da
família agora vão ter atendimento psicológico para aprender a lidar com a perda
de Cecília. "No mais, é seguir a vida", diz. "Eu sei que ela
lutou muito. O espírito dela vai continuar aqui, lutando, brincando e pulando
do mesmo jeito que fazia", diz.
Crianças recebem alta
Consternada desde a tragédia de
quinta-feira, a cidade de Janaúba teve um primeiro alento neste sábado, com a
alta hospitalar das 16 crianças que haviam sido menos afetadas e estavam
internadas na Fundação de Assistência Social de Janaúba, a Fundajan.
© BBC Menina de 4 anos foi uma das vítimas do incêndio em creche em MG | Foto: Arquivo pessoal |
As crianças foram recebidas
com festa do lado de fora do hospital, recebendo balões, brinquedos, pirulitos.
A enfermeira Letícia Rodrigues Mendes se vestiu de palhaça, com direito a nariz
vermelho, para alegrá-las.
"Foi emocionante. Queríamos tentar amenizar um pouco o
sofrimento delas. Mas sabemos que ainda vão sofrer muito. É um trauma muito
grande", diz.
As crianças partiram de volta para suas casas em uma van ao lado
dos pais. Os funcionários do hospital se reuniram para uma sessão coletiva para
falar sobre tudo que aconteceu e as dificuldades de todos em lidar com a
tragédia.
"Nós acompanhamos eles desde os primeiros momentos. Foi
péssimo", diz Mendes com os olhos enchendo de lágrimas. "É muito
difícil ver o sofrimento das crianças, a dor, vê-las todas queimadas. A gente
engole o choro e faz o nosso trabalho. Mas abala muito."
Vídeo: O que restou da creche incendiada por vigia em MG (Via BBC Brasil )
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