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sábado, 19 de outubro de 2013

Três décadas depois, Serra Pelada ressurge nas entranhas da Amazônia

Serra Pelada em 1982 e em 2013 (Foto: Aureliano/ Estadão Conteúdo)
SERRA PELADA EM 1982 E EM 2013 (FOTO: AURELIANO/
ESTADÃO CONTEÚDO)
"Você quer saber o que é Serra Pelada hoje?”, responde em forma de pergunta José Raimundo Nonato Silva, um negro forte de 63 anos, dono de uma pele tão
escura e brilhante que lhe valeu o apelido de Alumínio. “Isso aqui se tornou um cemitério de garimpeiros.” Sobrevivendo da aposentadoria da mãe, hoje Alumínio pode ser considerado um “blefado” – o que no peculiar dialeto desse povoado localizado a 45 quilômetros do município de Curionópolis, no sudeste do Pará, quer dizer simplesmente “pobre”.

Enquanto jogamos conversa fora em frente a um dos barracos de madeira que compõem o faroeste caboclo de Serra Pelada, praticamente intacto desde seu surgimento na década de 80, um homem conhecido apenas como Gaúcho se aproxima de nós e desembesta a falar, apontando para Alumínio. “Esse daí pegou muito ouro! Eu cheguei a ver esse cara jogando dinheiro para cima, numa praça aqui perto, que nem o Silvio Santos!”, conta, arrancando gargalhadas e movimentos de cabeça que atestam a veracidade de mais uma das infinitas lendas nascidas no maior garimpo a céu aberto que a humanidade conheceu.

Pelas contas de Alumínio, os barrancos tocados por ele e seus colegas renderam cerca de 100 quilos de ouro – ou R$ 10,4 milhões, pela atual cotação do minério. “Mas a minha parte ficou só em 10%”, diz. “Como o senhor gastou isso?”, pergunto. “Fui garimpar!”, Alumínio responde com um sorriso malicioso, fazendo um losango com os dedos das duas mãos para representar o órgão genital feminino.

Exatos 21 anos após o decreto do então presidente Fernando Collor de Mello que fechou oficialmente o garimpo, Serra Pelada vai produzir ouro novamente. Mas, desta vez, não haverá nem sinal das impressionantes imagens do formigueiro humano transformadas em arte pela sensibilidade fotográfica de Sebastião Salgado ou pelo cultuado documentário experimental Powaqqatsi, do cineasta norteamericano Godfrey Reggio. Isso porque já não é possível usar as antigas técnicas artesanais para extrair o minério. Agora, o ouro está escondido nas entranhas da Amazônia.

Neste semestre, modernas máquinas vão assumir a tarefa que no auge do garimpo, entre 1982 e 1983, cabia a 100 mil homens enlameados. Saem de cena os aventureiros que, assim como Alumínio, sonhavam “bamburrar” (enriquecer) do dia para a noite. Também estão aposentadas as pás e as picaretas que abriram a mítica cava de 1,2 quilômetro de diâmetro e de dezenas de metros de profundidade – hoje, um lago de águas calmas e barrentas onde crianças e adolescentes mais ousados chegam a nadar.

Nessa nova fase, a caça ao ouro será subterrânea e ficará a cargo da Serra Pelada Companhia de Desenvolvimento Mineral (SPCDM), que abriu um túnel de dois quilômetros, a sudoeste da cratera, para acessar o minério ao longo dos dez anos de vida útil projetados para a mina. A empresa é uma joint venture formada por uma mineradora canadense chamada Colossus e pela Coomigasp – uma cooperativa de 38 mil garimpeiros que, em 2010, foi presenteada pelo governo federal com a concessão de lavra da área equivalente a 100 Maracanãs onde está instalado o projeto. Três quartos de tudo o que for retirado ficam com a mineradora. Os 25% restantes deverão ser rateados entre os sócios da Coomigasp. Ao todo, os custos de pesquisa e infraestrutura vão ficar em R$ 500 milhões, integralmente bancados pela companhia canadense.

Ao longo dos anos 80, Serra Pelada rendeu oficialmente 43 toneladas de ouro. Esse é o montante comprado pela Caixa Econômica Federal, que ergueu uma agência no garimpo para tentar coibir o contrabando – sem sucesso. Mas não foi o suficiente para cumprir a promessa feita pelo governo militar de quitar nossa dívida externa com o ouro da Amazônia.

Técnicos do Ministério de Minas e Energia estimam que ainda existam pelo menos 50 toneladas de minério intocadas no entorno da cava – riqueza superior a R$ 5 bilhões. Em alguns trechos da jazida, a concentração de ouro por tonelada de minério extraído chega a ser 50 vezes superior à de Paracatu, a maior mina em atividade no país, em Minas Gerais. As reservas ainda são ricas em platina e paládio, valiosos para a confecção de joias.

Apesar das boas perspectivas, a direção da Colossus evita cravar um número sobre a quantidade de ouro remanescente. “A mensuração da mina será feita ano a ano porque o processo de sondagem é complexo”, explica Claudio Mancuso, canadense de ascendência italiana e torcedor do Milan, que ocupa o posto de CEO da companhia. “Se esta fosse a melhor mina do mundo – e ela não é, apesar de ser muito boa –, cada um dos 38 mil sócios da cooperativa receberia no máximo R$ 1 mil por mês, em dez anos”, calcula. Dificilmente o pagamento chegará à metade desse valor.

Nos áureos tempos de Serra Pelada, Curionópolis era conhecida como “KM 30” da rodovia estadual PA 275, ponto de comércio e de cabarés, cercada de histórias de farra e violência. “De dia era 30, de noite era 38”, diz um ditado, em alusão ao calibre do revólver mais popular no sudeste do Pará. O hoje acanhado município de 18 mil habitantes deve seu nome a Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, personagem emblemático da ditadura militar. Depois de comandar a repressão à Guerrilha do Araguaia, na divisa do Tocantins com o Pará, ele foi escolhido para colocar ordem no maior garimpo da história do Brasil.

A ideia dos generais era usar Serra Pelada como uma bomba de sucção de miséria, ocupando homens sem-terra e acalmando os conflitos fundiários comuns nessa parte da Amazônia. Curió, com ajuda de agentes da Polícia Federal, teve êxito. Diariamente, às 8 horas da manhã, todos os garimpeiros paravam de trabalhar para cantar o hino nacional. Em Curionópolis, o major é a um só tempo Deus e diabo. Em 2008, teve cassado o mandato de prefeito da cidade que leva seu nome por crime eleitoral – a boa e velha compra de votos.

Na cooperativa dos garimpeiros, longas filas se formam para colocar em dia a mensalidade de R$ 5, mas ninguém reclama. Na época do garimpo, os trabalhadores aguardavam em linha para tudo – desde usar o banheiro até desfrutar de Vanuza, uma burra que “foi a primeira mulher a quebrar o galho dos garimpeiros”, relembra um deles. Puxo papo com José Brito dos Santos, o Baixinho, um maranhense de 53 anos e 1,50 metro de altura. Ele conta como escapou da morte por capricho do destino. Sua rotina era subir até 50 vezes por dia, com sacos de 30 quilos de cascalho nas costas, as escadas de madeira chamadas de “Adeus, mamãe”. Certa vez, depois de fazer uma pausa, um desmoronamento matou 19 pessoas, soterrando o barranco em que ele trabalhava. “A verdade é que nunca tive medo de morrer. O cabra nem podia pensar nisso, senão não dava conta do recado.”

Histórias de morte morrida ou matada são lembranças corriqueiras por aqui. Assim como os “causos” de orgias homéricas, quase sempre em bordéis fora de Serra Pelada. Mulheres e cachaça eram os troféus cobiçados, porém proibidos pela Polícia Federal. Na mesma fila em que encontro Baixinho, um garimpeiro que prefere não se identificar recorda quando o dono do barranco onde trabalhava o convidou para uma noitada em um cabaré de Marabá, o principal município do sudeste do Pará. Numa casa com 17 mulheres, nenhuma com mais de 16 anos, o dono do barranco expulsou todo mundo com uma espingarda calibre 12. O bordel virou uma festa particular por três dias, com cerveja e churrasco. A conta ficou em 1,5 quilo de ouro – fora os 10 gramas com que cada uma das meninas foi presenteada.

Alguns garimpeiros de Serra Pelada não se enquadram no estereótipo do flagelado. É o caso de Airton Portilho, um gaúcho de Erechim. Empresário que mora no Tocantins, onde até já tentou carreira política, Portilho chama atenção por um motivo curioso: é um dos dublês do ator Antônio Fagundes. “Já até apanhei em cena de tortura. Agora, quando era para beijar alguma atriz, era ele que fazia.”

Serra Pelada é rica não apenas em ouro, mas em personagens folclóricos. O mais falado é José Mariano, o Índio, que acumulou 400 quilos de ouro. Reza a lenda mais difundida do garimpo que, certa vez, a atendente de uma companhia aérea no Aeroporto de Marabá deu pouca atenção a Índio, que queria viajar para o Rio de Janeiro, por conta de seus trajes pouco refinados. Irritado, ele comprou todas as passagens do voo e viajou sozinho. Por extravagâncias como essa, perdeu tudo.

Aos 63 anos, Gregório Grunupp é outro mito que vive a desfilar pelos bares de dominó no distrito de Serra Pelada. Apesar de nascido em Minas Gerais, é conhecido por Catarinense, devido à pele clara e aos cabelos amarelados. Sua fama começa por um fator biológico: ele é irmão da Elke Maravilha. “Ela veio para cá duas vezes. Em uma delas, a gente colocou a Elke dentro da cava. Ela sempre foi muito beijoqueira. Então, ela dava um monte de beijo nos garimpeiros, mas quando percebia alguma saliência cortava logo.”

Junto com outros dois irmãos, Catarinense chegou a Serra Pelada em maio de 1981. Entrou como “furão”, quer dizer, rasgando a mata para fugir da barreira da Polícia Federal que controlava o acesso ao garimpo. Dois anos depois, com a situação já regularizada e uma fatia de 5% de tudo que saísse do barranco em que trabalhava, encontrou a terceira maior pepita da história de Serra Pelada, com 33,5 quilos. Hoje, a peça está em exposição no Museu de Valores do Banco Central, em Brasília. “Teve gente do lado que até desmaiou. Mas eu fiquei calmo porque sabia que ia encontrar. Sabe aquela coisa de intuição? Inclusive, eu sou espírita”, explica.
Ao contrário dos outros irmãos, Catarinense preferiu ficar em Serra Pelada. Investiu o dinheiro que ganhou em negócios malfadados e, nem de longe, parece um “bamburrado”. Mesmo assim, não parece muito disposto a deixar o local em que viveu as maiores aventuras de sua vida.

Como tantos outros, também está na expectativa de que a retomada da mineração possa lhe trazer algum dinheiro. Mas, no fundo, não parece muito preocupado com isso. “Por que o senhor veio para cá? Como aguentou carregar tantos sacos de cascalho nas costas? Por que ainda está por aqui?”, faço uma série de perguntas inocentes à procura de respostas racionais. “É a febre do ouro. Serra Pelada é uma cachaça”, ele define.  

Saem de cena os garimpeiros enlameados para dar lugar a máquinas que vão explorar o ouro em túneis (Foto: Luiz Maximiniano)
SAEM DE CENA OS GARIMPEIROS ENLAMEADOS PARA DAR LUGAR A
MÁQUINAS QUE VÃO EXPLORAR O OURO EM TÚNEIS (FOTO: LUIZ MAXIMINIANO)

Mineiros esperam receber até R$ 20 mil por mês, mas o valor não deve chegar a R$ 500 mensais (Foto: Luiz Maximiniano)

Milhares de homens viveram a febre do ouro na antiga Serra Pelada... (Foto: Carlos Chicarino/ Estadão conteúdo)

... Hoje a cava está submersa (Foto: Luiz Maximiniano)

No auge de Serra Pelada, o metal era retirado manualmente (Foto: Agência O Globo)

Quase não havia segurança na área de mineração (Foto: Estadão Conteúdo)




GQ


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