Estatísticas oficiais indicam que o Brasil compra produtos de alta tecnologia da Coreia do Norte |
Para
especialistas em Coreia, a estatística curiosa é resultado, na verdade, de um
erro comum não apenas no Brasil: o registro pelas importadoras, por engano, de
produtos da Coreia do Sul como provenientes do norte.
Os
circuitos integrados são o principal item de exportação da Coreia do Sul. Em
2015, o país vendeu US$ 62,8 bilhões desses produtos, 12% do que embarcou para
o exterior, segundo a Comtrade, base de dados compilada pela ONU. Do total, US$
770 milhões chegaram ao Brasil, 14% do que compramos dos sul-coreanos naquele
ano.
"Já
no passado alguns itens da nossa pauta de importação me intrigavam", diz
Roberto Colin, embaixador brasileiro na Coreia do Norte entre 2012 e 2016.
"Conversei com 'traders' brasileiros e estrangeiros que faziam negócios
com a Coreia do Norte e eles acreditam que, no caso dos circuitos integrados e
outros produtos eletrônicos, se trata mesmo de um equívoco e que esses itens
são, na verdade, importados da Coreia do Sul", diz ele, que está baseado
atualmente na Estônia.
O regime de Kim Jong-un exporta pouco e principalmente matérias-primas | Crédito: KCNA |
O economista americano Nicholas
Eberstadt, que estuda o país há quase 30 anos, afirma que, na década de 1990,
erro parecido indicava que o México vinha importando milhões de dólares em
veículos da Coreia de Norte.
A estatística, ele conta, deu origem
a "maravilhosas teorias" - falsas na realidade - sobre supostos
planos de Kim Jong-il, pai de Kim Jong-un, de infiltrar seus automóveis no
mercado americano. "Os norte-coreanos não são grandes produtores de
veículos, de computadores, de celulares. Isso é reflexo do erro de algum
funcionário que confundiu sul com norte", ressalta ele, que é pesquisador
do think tank American Enterprise Institute (AEI).
O diretor de análise de dados da
consultoria Korea Risk, Leo Byrne, que viu situação parecida também na Índia,
diz ter detectado a inconsistência nos dados brasileiros em 2014 e chegou a
entrar em contato com o ministério na época, sem sucesso.
À BBC Brasil, a pasta afirmou que os
registros administrativos que compõem as estatísticas de comércio exterior
"são preenchidos pelo exportador e importador e eles são responsáveis pela
veracidade das informações prestadas".
Baseado em Seul, Byrne investiga
diferentes bases de dados para detectar violações às sanções impostas à Coreia
do Norte e entender como funciona a economia do país. No ano passado, cruzando
informações de três fontes diferentes, o britânico descobriu, por exemplo, que
o país vinha usando navios com a bandeira da Tanzânia para descumprir a
resolução 2270 da ONU.
De março de 2016, ela é uma das quase
10 resoluções que, desde 2006, condenam o programa nuclear norte-coreano e que,
em resposta a testes realizados pelo país, impõem sanções - restrições de
produtos que podem ser comprados e vendidos por outros países. A 2270 é uma das
mais duras. Além de estender a lista de mercadorias que não podem ser comprados
da Coreia e exportados para o país, ela limitou ainda mais as possibilidades de
comércio e instituiu uma inspeção obrigatória a todas as cargas que têm o país
como origem ou destino.
As sanções ficaram ainda mais rígidas
no último mês de setembro, depois de uma sequência de testes com mísseis e de
ameças feitas pelo país.
Criatividade
"A Coreia do Norte exporta
tipicamente matérias-primas", diz Byrne. Seu principal parceiro comercial
é a China, compradora de 90% dos US$ 2,9 bilhões exportados pelo país em 2016,
de acordo com a Comtrade. O segundo lugar é da Índia, com 3%. O Brasil ocupa a
11ª posição, com 0,2% do total.
O comércio com a Coreia do Norte
representaria menos de 0,1% do total de importações e exportações do Brasil, de
acordo com os dados registrados oficialmente - incluindo os atribuídos
incorretamente ao país. Devido à pouca expressividade, os especialistas em
comércio exterior brasileiros não costumam acompanhar a corrente entre os dois
países, o que explica que esse tipo de erro sobre a importação de manufaturados
de alto valor agregado não tenha gerado estranhamento no mercado.
Tradicionalmente, os principais
produtos exportados pelo regime de Kim Jong-un são carvão, petróleo, minério e
vestuário - todos alvos de novas sanções desde o ano passado.
As restrições crescentes dos últimos
dez anos, contudo, têm estimulado a criatividade dos norte-coreanos para
diversificar a pauta de exportações e desenvolver produtos com
"certa" tecnologia, diz o britânico Christopher Green, pesquisador da
Universidade de Leiden, na Holanda, e ex-editor do Daily NK, periódico virtual
focado em notícias sobre a Coreia do Norte.
Ele ressalva, contudo, que é difícil
fazer um diagnóstico preciso - inclusive sobre se esse desenvolvimento
tecnológico tem ou não relação com o programa nuclear -, já que o governo
norte-coreano é pouco transparente e há uma carência grande de informações
públicas disponíveis.
Crescimento
Norte-coreanos testam massageadores no estande da China em feira aberta nesta segunda-feira em Pyongyang |
"Desde
2010, o país vem dando mais atenção ao desenvolvimento econômico", pondera
Bradley Babson, à frente do DPRK Economic Forum no U.S.-Korea Institute, ligado
à Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins.
Em
seu primeiro grande discurso, em abril de 2012, Kim Jong-un afirmou que a
população não teria mais de "apertar os cintos" e que passaria a
"aproveitar a riqueza e prosperidade do socialismo", destaca Babson.
Desde então, a propaganda do governo passou a ressaltar o foco em uma
"economia do conhecimento" e no desenvolvimento tecnológico.
Ele
conta que da década de 1990 para cá pesquisadores foram enviados pela primeira
vez a universidades no exterior, tiveram acesso à internet e a aparelhos
celular.
O
setor privado ganhou maior participação na economia, o fornecimento de energia
elétrica ficou mais estável e o risco iminente de fome a que a população estava
sujeita é uma lembrança de um passado recente.
"Parece
um pouco o Vietnã em meados dos anos 1990", diz ele, que trabalhou no país
do sudeste asiático durante a transição entre os regimes comunista e
capitalista. A diferença do caso norte-coreano, ele acrescenta, é o discurso
bastante ideológico do governo, o foco no programa nuclear e a consequente
escalada de tensão que essa combinação gera internacionalmente.
"Como
esses dois lados (o desenvolvimento econômico e o programa nuclear) vão
conviver no futuro, isso é um mistério".
Eberstadt,
do AEI, ressalva que, apesar da melhora das condições econômicas, há indícios
de que a Coreia do Norte continua contando com uma série de atividades ilegais
para se financiar, da venda de armas a falsificação. "A moeda está
relativamente estável há cinco anos, isso não é comum em economias como a
norte-coreana e só reforça a crença de que eles contam com fontes ocultas de
receitas".
BBC Brasil
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