Em
novembro de 2016, a fotógrafa Adri Felden recebeu um convite da Prefeitura de
São Paulo para realizar um trabalho voluntário na cracolândia: fazer retratos
de dependentes químicas da região.
Frequentadoras da cracolãndia paulistana em retratos da fotógrafa Adri Felden; percentual de mulheres na região dobrou em um ano |
"Antes
de aceitar, fui conhecer a cracolândia", conta Felden, de 50 anos,
lembrando que a presença de meninas e mulheres na área, algumas delas grávidas,
foi o que mais chamou sua atenção.
Segundo
pesquisa divulgada neste mês pela Secretaria de Desenvolvimento Social do
Estado, a percepção de Adri está certa: o percentual de mulheres na cracolândia
mais que dobrou em um ano: de 16% em 2016 para 34% em 2017.
Enquanto
no ano passado 119 usuárias teriam circulado diariamente pela região que
concentrou durante anos uma feira de drogas a céu aberto, neste ano a
estimativa é de 642 mulheres.
O
estudo mostrou que o tráfico está cada vez mais organizado na cracolândia e que
traficantes têm privilegiado a cooptação de mulheres para consumo da droga e
exploração. Outro ponto identificado foi a associação do tráfico na região à
prostituição e ao abuso sexual de crianças, adolescentes e mulheres.
"Mulheres
que antes iam somente comprar droga acabaram sendo recrutadas pelo tráfico.
Muitas delas passaram a ser exploradas, inclusive sexualmente. É impressionante
como a cracolândia conseguiu manter as mulheres na região, tanto para consumo
como trabalho", aponta o secretário de Desenvolvimento Social de São
Paulo, Floriano Pesaro (PSDB).
Especialistas
envolvidos no estudo apontam que as mulheres são mais vulneráveis do que os
homens na cracolândia: chegam com laços sociais e familiares rompidos e, por
isso, têm mais dificuldade em procurar e receber ajuda.
A
pesquisa entrevistou 139 usuários nos períodos entre abril e maio de 2016 e
abril e maio de 2017. Foi o primeiro estudo a traçar características
sociodemográficas e de vulnerabilidade social da população dessa região.
Mulher é conduzida por policial em ação na cracolândia em maio deste ano; pesquisa identificou cooptação de usuárias pelo tráfico |
"Foi
uma surpresa identificar esse número de mulheres na região e mais surpresa
ainda perceber que a violação de direitos humanos em dependentes químicas é
maior do que em homens", afirmou Pesaro.
Mulheres
estão mais expostas à violência - e ao domínio de traficantes - porque muitas
vezes o corpo feminino é visto como moeda de troca por drogas.
"Constatamos
trabalho infantil e análogo à escravidão, com maior incidência sobre o sexo
feminino. Há mulheres jovens, mas também muitas idosas são exploradas ali.
Também encontramos mulheres em cárcere privado e até reféns", relata o
secretário.
De
acordo com a pesquisa do governo, a população de usuários frequentes da
cracolândia saltou de 709 pessoas em 2016 para 1.861 em 2017 - um aumento de
162%.
"Um
dos motivos desse aumento foi a região ter ficado mais fértil para compra e
venda de drogas", avalia Pesaro.
Preconceitos
Para
o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador do Recomeço, programa anticrack do
governo estadual, o preconceito é mais intenso contra uma mulher viciada em
crack do que contra um homem, o que dificulta uma eventual reabilitação.
"É
muito mais difícil para a mulher aderir ao tratamento, em função dos estigmas e
julgamentos morais, e mais provável que não se sintam confortáveis com o
tratamento, por serem minoria", afirma.
"Os
laços familiares se perdem, ela se dissocia mais rápido dos amigos por causa
dos julgamentos, perde a guarda dos filhos. Para sobreviver, ela substitui
laços domésticos pelo grupo que encontra na cracolândia", completa.
Há
também agravantes fisiológicos. Do ponto de vista médico, a dependência química
é mais severa em mulheres, por fatores hormonais.
"É
muito mais difícil para uma mulher se manter abstinente do que para um homem.
Também é mais fácil para elas desenvolverem a dependência química", afirma
Laranjeira.
Mulher retratada na cracolândia paulistana; dependentes ficam mais expostas à violência na região, aponta levantamento |
A
origem dessas mulheres dificulta uma possível saída da vida na cracolândia:
apenas 56% são de São Paulo e região metropolitana. Outras 19% declararam vir
do interior paulista, 21% de outro Estado e 2% de outros países.
Para
a fotógrafa Felden, que aceitou o convite da gestão municipal anterior e
produziu um ensaio fotográfico com 21 dependentes químicas, de 20 a 53 anos,
ver a situação daquelas mulheres de perto trouxe "uma desolação
profunda".
Na
época do ensaio, os dependentes químicos ocupavam uma esquina na região da Luz,
centro de São Paulo. O fluxo, como era conhecida a concentração de usuários e
traficantes, era tão intenso que impedia a passagem de veículos.
Desde
o último dia 21 de maio, duas ações policiais de combate ao tráfico na região
dispersaram os usuários, que se espalharam por outros pontos da área central da
cidade, mas tem se reaproximado da cracolândia original.
Violência de gênero
O
levantamento indicou que 44% das mulheres da região tinham histórico de abuso
físico ou sexual na infância; 70% declararam já terem sido vítimas de violência
na cracolândia.
Felden,
que conversou com dependentes químicas para produzir o ensaio fotográfico, diz
que histórias de violência contra as usuárias eram comuns.
"Uma
das mulheres que fotografei tinha acabado de sofrer um estupro. Ela tem 53 anos
e já havia sofrido violência sexual na infância", relata a fotógrafa.
"Outra, de 20 anos, analfabeta e moradora de rua, já tinha feito seis
abortos e, na última vez que a vi, no Natal, havia levado uma facada de seu
companheiro no joelho."
"Ali
você tem, em um único território, todas as violações de direitos humanos, sendo
o grupo das mulheres e crianças o mais vitimado e mais esquecido pelas
políticas públicas até agora", afirma Pesaro.
Ensaio fotográfico se tornou injeção de autoestima em dependentes 'para que se vissem como mulheres fortes', afirma fotógrafa |
Gravidez e sífilis
A
pesquisa mostrou também que mais da metade das mulheres que engravidaram na
cracolândia nunca quiseram fazer exame pré-natal. Todos os filhos das
dependentes químicas da região nasceram abaixo do peso, e 67% nasceram
prematuros.
No
momento da entrevista, 14,3% das mulheres estavam grávidas e 21% já declararam
que já tinham praticado aborto.
"É
fato que quando pensamos em dependentes químicos, sempre pensamos em homens,
não em mulheres. Mas elas estão ali e requerem diferentes cuidados e
tratamentos que um homem", alerta Laranjeira, para quem o pré-natal deve
ser um serviço essencial na cracolândia.
"Gravidez
precoce e não planejada, aumento de sífilis sem precedentes - talvez a maior
epidemia dos últimos anos - HIV, hepatite e tuberculose são problemas atuais da
cracolândia", acrescenta Pesaro.
O
secretário diz que, diante dessas constatações, mulheres estão sendo
priorizadas nas unidades de atendimento emergencial a dependentes, montadas
pela prefeitura na região central.
"Há
também um trabalho de convencimento, porque muitas mulheres escondem que têm
crianças ou que estão grávidas, com medo de perder os filhos", conta o
secretário.
Mulheres em abordagem durante ação policial na cracolândia em maio |
Para
Laranjeira, a maternidade pode ser uma oportunidade para a mulher deixar o
vício. "A ajuda que devemos oferecer a uma grávida nessa situação não é
tirar a criança dela. É preciso oferecer um tratamento da dependência química
que permita a ela ficar com o filho e, depois, ajudá-la a refazer a vida."
Autoestima
Felden
conta que produzir o ensaio com as dependentes não foi fácil. Era preciso
conquistar confiança e retirá-las da concentração de usuários. Aos poucos e com
conversa, conta, as mulheres começaram a vir, trazendo brincos e até maquiagem.
Ao
ver o resultado do trabalho, Felden revelou as fotos e voltou à região para
entregar as imagens às 21 mulheres que registrou.
"A
ideia era apenas fazer um trabalho voluntário com mulheres da cracolândia, mas
esse ensaio se tornou um estímulo de autoestima para que se vissem como
mulheres fortes. Uma das mulheres me contou depois que tem tentado reduzir os
danos do vício depois que se viu bonita", relata a fotógrafa.
BBC Brasil
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