Projeto foi aprovado pelo Senado nesta quarta-feira e depende da sanção
de Michel Temer Exército diz que regra traz "segurança jurídica" e
entidades, que estimula a impunidade
Um militar durante a ocupação da Rocinha, na quarta-feira. MAURO PIMENTEL (AFP) |
"Uma licença para matar". Assim algumas entidades
de direitos humanos batizaram o projeto de lei aprovado nesta semana pelo
Senado Federal (PLC 44/2016) que transfere da
Justiça comum para a militar o julgamento de homicídios cometidos por militares
durante operações especiais de segurança pública em território nacional. A
mudança prática é a seguinte: se um profissional da Marinha, Exército ou Aeronáutica assassinar um civil durante uma das atuais operações em
comunidades do Rio de Janeiro, onde as Forças Armadas estão autorizados a atuar
até o fim do ano pelo menos, ele não será julgado pelo Tribunal do Júri, e sim
por um tribunal formado em sua maioria por juízes militares, que não tem
necessariamente uma formação jurídica.
O projeto tramitava no Congresso desde 2016. De autoria do
deputado federal Espiridião Amim (PP-SC), tinha como objetivo atender aos
anseios de militares que diziam se sentir desamparados juridicamente quando
eram convocados a atuarem em patrulhas como complemento à atuação da polícia ou
em substituição a elas. Desde 1996, todo militar que mata um civil é julgado
como qualquer outro cidadão brasileiro, por um colegiado formado por sete
jurados escolhidos entre a população local e coordenados por um juiz criminal.
Os jurados decidem se o réu é culpado ou inocente e se há atenuantes ou
agravantes para os delitos. E é o juiz quem estipula a pena. Com a alteração, a
palavra final será de uma maioria formada por membros da sua corporação. Na
primeira instância, são quatro juízes militares e um civil. No Superior
Tribunal Militar, são quinze militares e cinco civis.
Aprovado pelo
Congresso Nacional, a proposição ainda depende da sanção do presidente da República, Michel Temer (PMDB).
Questionada nesta quinta-feira, a secretaria de Comunicação da Presidência da
República informou que Temer ainda ouvirá os ministros das áreas envolvidas,
antes de decidir se veta ou se sanciona a lei. Se depender do que já disseram
alguns de seus subordinados que atuam na área militar, o presidente sancionará
a lei.
O ministro da
Defesa, Raul Jungmann, disse ao jornal Folha
de S. Paulo que o projeto corrige falhas da legislação vigente. Por meio de
seu Twitter, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas agradeceu
aos parlamentares por darem garantirem a “segurança jurídica” de seus
comandados quando em operações de Garantia da Lei e da Ordem, a lei que regula
a atuação dos militares em situações que as forças regulares de segurança são
consideradas insuficientes. Villas Bôas foi um dos principais articuladores da
aprovação do projeto junto a senadores e deputados.
Uma das poucas
vozes dissonantes na gestão Temer vem da Secretaria de Promoção dos Direitos
Humanos. A responsável pela pasta, a advogada Flávia Piovesan, chegou a comemorar no ano
passado que essa votação havia sito travada no Senado. Ela era
contrária a essa mudança legislativa. Para ver sua tese vencedora, Piovesan
terá de entrar em um embate com políticos de confiança do presidente, como o
líder do Governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), um dos que pediu celeridade
nessa votação pelo plenário.
Batalha jurídica
Conforme a decisão
de Temer, uma nova frente jurídica deve ser aberta. Entidades e partidos
políticos contrários à mudança legislativa prometem recorrer ao Supremo Tribunal Federal para
questionar a constitucionalidade da lei. “Entendo que a lei seja
inconstitucional, porque a Constituição Federal fala que crimes contra a vida
devem ir para o júri”, afirmou ao EL PAÍS a diretora da ONG Human Right Watch
no Brasil, Maria Laura Canineu. Em um artigo publicado no mês passado, ela
ressaltou que esse tipo de julgamento é uma prática da ditadura.
Além da HRW, a
Conectas Direitos Humanos e a Anistia Internacional coletaram assinaturas para
pressionar os políticos a tentarem reverter essa decisão dos legisladores. Em
sua petição virtual, a
Anistia Internacional afirma que, caso a lei entre em vigor, o “Brasil violará
tratados internacionais dos quais é signatário, obrigações que incluem a
garantia do direito ao julgamento justo, imparcial e independente”.
Um outro ponto
questionado pelos estudiosos do tema é o que trata do treinamento dos
militares. Eles entendem que esses profissionais estão preparados para lidar
com ambientes beligerantes, não com segurança pública. “O policial tem
preparação, o soldado, não”, afirmou o diretor-adjunto da Conectas, Marcos
Fuchs.
Esse
argumento é insistentemente contestado pelos militares. Em palestra no dia 23
de agosto no Itamaraty, o general Sergio Etchegoyen, chefe do Gabinete de
Segurança Institucional e um dos principais assessores de Temer na área de
segurança, afirmou que mencionar a falta de treinamento dos militares é balela
de especialistas, conforme revelou o site The Intercept
Brasil. “Somos treinados em cima de princípios, de conceitos, com
alguns fundamentos, com muita flexibilidade pra dar agilidade mental pra poder
resolver o problema. Então, se der pro militar um problema de segurança
pública, ele vai se adaptar e vai fazer”.
Enquanto
não há uma definição do presidente, neste momento, o Exército auxilia as
polícias do Rio de Janeiro na patrulha de ao menos duas comunidades. Nos
últimos dez anos, já foram ao menos 12 intervenções semelhantes no Estado, além
de atuações na Bahia, Espírito Santo e Rio Grande do Norte. Um caso polêmico recente foi a convocatória de militares para reprimir o
protesto contra o Governo Temer em maio em Brasília.
MARCOS FUCHS: “O CONGRESSO RETROCEDEU”
O EL PAÍS fez três perguntas sobre o julgamento de militares por tribunais militares a Marcos Roberto Fuchs, advogado especialista em Direitos Humanos e diretor-adjunto da Conectas.
Pergunta. Por que alterar a legislação neste momento, fazendo com que militares passem a ser julgados por homicídios em tribunais militares, não mais em civis?
Resposta. Há uma toada de militarização que acha que as Forças Armadas serão órgão competente para combater o tráfico e a criminalidade no país e, principalmente, nos morros cariocas. O que não é bom. O policial tem preparação, o soldado, não. Se cometer um homicídio o militar conseguirá o foro mais que privilegiado, que é o da Justiça Militar. Esse é um tribunal em que as decisões são muito controversas.
P. O índice de condenações pela Justiça Militar é alto?
R. Não. É baixíssimo. Principalmente em patentes mais altas. Quando é de sargento para cima, há um amolecimento por parte de quem julga. Aí está um dos problemas.
P. Na sua visão, o projeto é constitucional?
R. Entendo que é inconstitucional. Já havia um dispositivo constitucional que garantia esse foro na Justiça Comum e o Congresso retrocedeu. Na época da ditadura militar esses julgamentos ficaram bem característicos. Havia uma proteção. Há um caso emblemático de um militar que espanca a mulher dele com cinto, até deixar a marca do brasão da fivela nela. Quem julgou foi um tribunal militar. Mas esse era um crime comum. Corremos o risco de voltar a esse tempo.
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