Usado no tratamento de diversas doenças, aumento da demanda e falta de
regulamentação faz com que pacientes e produtores vivam na insegurança
Plantas de Cannabis do tipo sativa em estufa de cultivo para uso medicinal. TARSO ARAÚJO/AGÊNCIA PÚBLICA |
Numa cidade em Santa Catarina, uma mulher e um homem na casa
dos 50 anos conversam despreocupadamente em frente a uma escola em junho. A
reportagem da Agência
Pública veio encontrar Leonardo*, que escuta atentamente Joana
contar a história de sua filha. Ela tem paralisia cerebral. A mãe já tentou de
tudo para controlar as convulsões da moça de 22 anos. E agora quer tentar a maconha. Ele tem um pequeno frasco
âmbar na mão e explica: “Você vai
dar três gotas para ela, três vezes ao dia. E observa. Se ela não melhorar,
você aumenta para cinco gotas”, diz. “Mas você tem que ir ao médico para ele
acompanhar o quadro dela.” A dupla ainda fala sobre reportagens do Fantástico,
plantas e os efeitos do CBD e do THC, moléculas responsáveis por suas
propriedades terapêuticas. No final, a mulher tira discretamente do bolso
algumas notas amarrotadas e as entrega. É o único momento da conversa que
transparece alguma tensão. “São aqueles 150 reais que te falei. É tudo que
consigo agora, tá, Leonardo?”, diz. “Claro, não se preocupa”, responde o homem.
Professora da escola municipal em frente, Joana conta que desde 2014 quer testar a planta no tratamento da filha. “Só que o óleo importado é caro demais, não dá pra mim.
Então, assim que eu soube que você estava fazendo, eu falei: ‘Agora vai’.”
Cenas como essa estão se
tornando cada vez mais comuns, com o aumento da oferta de óleos de
maconha feitos no Brasil de modo artesanal – e
clandestino. Produtores e pacientes relatam um número cada vez maior
de usuários. Alguns deles se organizam para produzir seus próprios óleos. “Todo
dia recebo e-mail de alguém querendo abrir associação ou ter autorização para
cultivo coletivo”, diz Emílio Figueiredo, advogado que desde 2015 trabalha para
regularizar essas iniciativas na Justiça. Uma delas, a associação de pacientes
Abrace Esperança, em João Pessoa, ganhou uma liminar de uma juíza federal para
fornecer óleo para cerca de 400 pacientes. “Temos que fazer um contraponto aos
óleos importados”, diz Figueiredo, um dos líderes do Reforma, grupo de
advogados que defende a revisão das políticas de drogas no Brasil.
Hoje
em dia, os óleos importados são a
primeira opção para quem decide fazer o tratamento com Cannabis. E um dos maiores incentivos ao crescimento do
mercado clandestino é a dificuldade para obter esses produtos, que depende de
um processo burocrático e caro. Os produtos mais baratos custam 200 dólares
(cerca de 630 reais). Somando frete de cerca de 150 reais e impostos, o custo
mensal do tratamento não sai por menos de 1.000 reais. E pode chegar a 7.000
reais para pacientes adultos, que precisam de maiores quantidades.
Além
disso, a importação depende de autorização da Anvisa, concedida diretamente
pelo presidente da agência. “Muitos pacientes saem daqui com laudo, receita e
termo de responsabilidade assinado por mim, mas voltam na próxima consulta sem
ter começado o tratamento porque não conseguiram resolver tanta papelada”, diz
o neurologista de Recife Pedro Mello, que trata cerca de 80 pacientes
consumidores de óleo de maconha.
Fabricar
o óleo não é tão complexo. A Cannabis sativa pode ser cultivada em qualquer
região do país, até mesmo em apartamentos. E o método mais comum de preparação
do óleo está disponível em dezenas de tutoriais na internet. A matéria-prima –
flores da planta fêmea – é colocada de molho em álcool, que absorve
canabinoides como o THC e o CBD. Em seguida, a solução alcoólica esverdeada vai
para uma panela, com temperatura controlada. Aos poucos, o álcool evapora e
deixa no fundo uma pasta escura. Essa pasta é um óleo caseiro que, segundo os
pacientes, é capaz de controlar sintomas de diversas doenças, como epilepsia,
dores crônicas, Parkinson, esclerose múltipla e enjoos causados por
quimioterapia.
Estufa do Leonardo*, que atende cem pessoas em um espaço relativamente pequeno. TARSO ARAÚJO/AGÊNCIA PÚBLICA |
A lei de drogas
brasileira – a Lei 11.343, de 11 de outubro de 2006 – diz que a União pode
autorizar “o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput
deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e
prazo predeterminados, mediante fiscalização”. Entre eles, a Cannabis.
Como a lei não está
regulamentada, os pacientes e os produtores que os abastecem ficam em situação
delicada. Se fossem flagrados, Joana e Leonardo poderiam ser levados para a
delegacia. Ele responderia ao artigo 33, sobre tráfico de drogas, que prevê pena
de 5 a 15 anos de prisão. Além da cadeia, se fosse condenado, ele teria todos
os seus bens confiscados pelo Estado, inclusive casa e carro. A mãe da paciente
poderia ser enquadrada no mesmo artigo ou no 28, que trata dos usuários.
“Interpretações jurídicas mais conservadoras podem acontecer e os pais serem
indiciados. Isso é preocupante”, diz José Roberto Godoy, procurador do
Ministério Público Federal da Paraíba.
Os pioneiros
Leonardo rejeita o
rótulo de traficante, que poderia levá-lo à cadeia. “Eu não vou atrás de
ninguém. Só atendo pessoas que me procuram e me pedem ajuda”, explica. “E como
vou negar, se sei que o óleo pode melhorar radicalmente a saúde de uma pessoa?”
Ele vende cada
frasco de 30 mililitros por 350 reais, mas diz que o preço é apenas uma
referência. “Prefiro às vezes dar ou vender mais barato, em vez de deixar o
paciente com uma dívida. Porque, se no mês seguinte ele não tiver dinheiro de
novo, ele vai se sentir na dívida e parar de tomar o remédio.” Jardineiro de
profissão, Leonardo é um pioneiro na produção e distribuição de óleo de
cannabis para fins medicinais no Brasil.
Ele conta que
cultiva a erva há mais de 20 anos, para consumo próprio. Em 2011, aprendeu com
um médico a fazer óleos e pomadas com a planta e passou a fornecer o produto
para amigos e vizinhos cuidarem de sintomas diversos como enjoos, dores e
problemas articulares. Em 2014, com a repercussão da história de Anny Fischer,
menina de 5 anos portadora de epilepsia que se tornou a primeira pessoa do
Brasil com autorização judicial para usar Cannabis para o controle de
convulsões, começou a receber pedidos de pais de crianças com a doença. De lá
para cá, ele parou de fazer outros trabalhos de jardinagem para se dedicar
exclusivamente ao cultivo de maconha para fins medicinais. “Tem sido difícil
dar conta da demanda. A procura não para de aumentar.”
Ele atende
regularmente cerca de cem pacientes. Para isso, mantém uma pequena estufa de 6
metros quadrados, com cerca de 16 pés em vasos de 60 litros. Cada um deles
rende 500 a 800 gramas, e cada 10 gramas de planta rendem 1 mililitro de óleo
concentrado. Nivaldo*, outro produtor de Santa Catarina, arrenda o cultivo de
famílias de diferentes estados para sua produção. “Compro o cultivo dessas
famílias, faço o óleo, coloco nas seringas e volto para casa. Depois despacho
as encomendas pelo correio”, diz o ex-marinheiro, que largou a vida de
embarcado para se dedicar ao fornecimento de óleo e diz que atende pelo menos
200 pessoas por mês.
“O fato de esses
produtores estarem na ilegalidade é uma injustiça. O direito à saúde, à vida e
ao bem-estar deveria estar acima de qualquer proibição de drogas”, diz o
advogado Figueiredo.
Cassiano Teixeira fundou a Abrace Esperança, única associação de pacientes com liminar que protege seu cultivo de cannabis para produção de óleo medicinal. TARSO ARAÚJO/AGÊNCIA PÚBLICA |
A Abrace, de João
Pessoa, é a pioneira no modelo de produção por associativismo. Cassiano
Teixeira, diretor-executivo da associação, confessa que aprendeu a fazer óleo
no YouTube para dar à mãe, que atravessava uma depressão. “Minha tia morreu, e
ela não comia, não fazia nada. Então entrei com o óleo”, diz. “Misturei no
azeite e ela passou a tomar sem saber. Aí recuperou cinco quilos e voltou à sua
rotina normal. Aquilo me convenceu de que o
óleo é mesmo benéfico.” Logo depois, a história de Anny Fischer se
tornou nacionalmente famosa. Em maio de 2014, Cassiano foi ao 3o Simpósio
Internacional de Cannabis Medicinal, na Unifesp, em São Paulo. Durante os
intervalos, abordava pacientes para oferecer seu óleo. Alguns, incapazes de
comprar o óleo importado, começaram testar o produto em seus filhos com
epilepsia. E a vida de Cassiano começou a mudar.
“As mães me
mandavam vídeos agradecendo e relatando o efeito do óleo. Eu postava na
internet e isso começou a ter visibilidade.” Para atender à demanda, ele tratou
de baratear a matéria-prima. Em vez de comprar maconha numa boca de fumo
qualquer de João Pessoa, foi a uma região produtora em Solânia, no sertão da
Paraíba. Comprou um quilo da erva por 1.000 reais e voltou com ela no
porta-malas do seu Corsa preto, ano 1990. Na volta, foi parado numa blitz.
“Minha sorte é que fui de terno, já com medo de isso acontecer, e chovia muito.
Aí o policial olhou pra mim e deixou passar.” Depois disso, passou a receber a
encomenda em casa, entregue pelo “anjo” – como se refere ao produtor camponês,
que abastece o tráfico com a mesma planta.
Então, Cassiano
teve uma ideia que hoje é referência para outros grupos que querem cultivar
Cannabis para uso medicinal. Desde que começou a fornecer óleo, ele já bancava
a produção com doações, em vez de vendas. “Cada família contribuía como podia.
Quem tinha mais dava mais, quem tinha menos dava menos”, diz. Então, em
setembro de 2015, ele decidiu formalizar essa relação constituindo uma
associação de pacientes. Para ter o remédio, as famílias precisam se associar,
enviar prescrição e laudo médico. Além disso, ele criou uma marca para seu
extrato, batizado de “Óleo Esperança”.
Em alguns meses,
dezenas de mães começaram a mudar seus nomes no Facebook para incluir o nome do
remédio artesanal que mudava a vida de seus filhos. Tornaram-se Joseane
“Esperança” dos Santos, Lúcia Almeida “Esperança” e assim por diante.
Do importado ao nacional
O caso de João
Pessoa é emblemático também de como as famílias gradativamente adotam os óleos
nacionais – e de como a falta de regulamentação as afeta.
Em 2014, um grupo
de 16 famílias de crianças portadoras de epilepsias de difícil controle
conseguiu na Justiça o direito de importar canabidiol (CBD) sem depender da
autorização da Anvisa, com o apoio do Ministério Público Federal da Paraíba (MPF-PB).
“Só que alguns meses depois eles me relataram que estavam com dificuldades
financeiras para continuar o tratamento. Estavam fazendo rifas, vendendo carro,
fazendo dívidas para pagar o óleo importado”, diz José Godoy, procurador que
atua na área de direito do consumidor e foi o autor da ação. “Tentamos que o
governo bancasse o custo, mas não conseguimos.”
A conta não é mesmo
barata. Cibele de Oliveira Fernandes é mãe de João Vitor, 17 anos, e Samuel,
15. Os dois têm epilepsia refratária, e o mais velho, autismo. “Vitor tinha 18
a 20 convulsões por dia. Passou a ter uma ou duas. Mas eu vivia aperreada: com
os dois meninos, todo meu dinheiro era para pagar canabidiol.” Funcionária
pública, ela conta que gastava cerca de 1.200 reais com cada seringa, que
rendia por 10 dias para cada criança. Seu custo mensal chegava a 7.000 reais.
“Eu não fazia conta para não enlouquecer. Não podia parar o tratamento, mas não
poderia bancar com aquele custo.”
Cibele Fernandes (à dir.) em evento da Liga Canábica, associação de João Pessoa que luta pela reforma das políticas de drogas. Mãe de duas crianças com epilepsia, ela deixou de importar óleo para usar produto feito artesanalmente. TARSO ARAÚJO/AGÊNCIA PÚBLICA |
A saída
das famílias foi abandonar o óleo importado e experimentar o artesanal
produzido na própria cidade pela Abrace. “Estou na melhor fase da minha vida”,
diz Cibele sobre os resultados. “Eu tenho um filho autista que praticamente
deixou de ser autista. Me olha nos olhos, dá gargalhadas, pede carinho… São
coisas que ele nunca fazia.”
A
preocupação dos pais deixou de ser o dinheiro para ser a segurança da Abrace.
“A falta de regulamentação me deixava angustiada. A gente poderia ficar sem
óleo a qualquer momento, se a polícia batesse lá.”
A
Abrace preparou então uma ação judicial solicitando autorização para cultivar e
produzir óleo para seus associados. “Eles seriam presos e com isso todo o
material de laboratório seria apreendido e as plantas, destruídas. Levaria
meses para voltar à produção anterior, e isso traria um prejuízo imediato,
fazendo cessar o fornecimento do óleo para as famílias”, diz José Godoy, que
colaborou na ação com um parecer do Ministério Público. A associação conseguiu
anexar ao processo laudos e prescrições de 151 pacientes, além de pareceres positivos
do MPF-PB, de médicos das famílias e pesquisadores da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). Em 30 de abril, a juíza concedeu liminar dando salvo-conduto
para ela continuar fornecendo seus produtos para aquelas famílias e assinou um
termo estendendo o benefício às famílias que conseguissem completar a
documentação. “Você não sabe quantas noites eu passei sem dormir com medo de
ser preso aqui dentro”, diz Cassiano Teixeira, diretor-executivo da Abrace, em
frente ao cultivo que usa para preparar o óleo.
Cassiano Teixeira, diretor-executivo da Abrace, cuida de plantas na sala em que elas são postas para secar, depois de colhidas e antes da extração do óleo. ABRACE |
“Legalizada”, a
Abrace se popularizou e se profissionalizou. A notícia da liminar na TV fez o
telefone tocar sem parar. De abril para maio, o número de novos associados
saltou de 37 para 123. Atualmente, 378 pacientes são atendidos mensalmente pela
associação – protegidos por uma decisão judicial – e 235 aguardam numa lista de
espera. As pessoas pagam R$ 100 apenas para se cadastrar e entrar na fila. Cada
paciente que já entregou a documentação necessária – prescrição e laudo médico
e termo de responsabilidade – paga R$ 150 por mês, a não ser por 30 famílias de
baixa renda, isentas de mensalidade. A receita de cerca de R$ 50 mil reais
mensais é reinvestida na associação e em salários. Com uma garantia judicial,
Cassiano formalizou a contratação de sete pessoas que já trabalhavam na
associação e ampliou a equipe. Hoje, são dez funcionários – contando ele mesmo,
como diretor executivo. O time inclui equipe administrativa, químico,
farmacêutico, designer, arquivista e atendentes, além de dois estagiários e
dois voluntários. “Eu estou feliz de ter salário e carteira assinada, mas ajudo
desde o começo, e não é por dinheiro. Isso é uma missão na nossa vida”, diz
Mizael Cabral, designer da Abrace.
A associação
cultiva toda a matéria-prima em uma estufa de 96 metros quadrados, finalizada
em junho. “Depois da liminar, não tive mais medo, então comecei a usar todo o
espaço da associação para cultivo”, diz Cassiano. A linha de produtos tem
agora, além de óleos em gota ricos em THC e CBD, uma versão em spray oral, que
os pacientes usam para situações de emergência – borrifado no nariz das
crianças durante a convulsão, ele produz efeito mais rápido, segundo a
associação. Na área interna, tudo foi reformado para atender a exigências
sanitárias. A ONG já tem autorizações da prefeitura e do Corpo de Bombeiros
para funcionar como farmácia de manipulação e aguarda a visita de fiscalização
da agência municipal de vigilância sanitária.
Um dos principais
benefícios vai para os pacientes: a Abrace está conseguindo destravar acordos
com a Universidade Federal da Paraíba e com o Instituto Nacional do Semiárido
para ter seus produtos analisados e desenvolvidos em colaboração com cientistas
e seus associados são acompanhados oficialmente por pesquisadores.
“Sofri muito no
comitê de ética”, diz Katy Gondim, do Departamento de Farmácia da UFPB e
especialista em farmacologia de produtos naturais. “Quando perguntavam para mim
qual é a origem desse óleo e eu dizia que era clandestina, eles diziam: ‘Então
não queremos nem saber’. Agora está tudo mais fácil, e pesquisadores de outras
áreas estão abraçando a causa”, diz a pesquisadora, que acompanha pacientes da
associação desde 2014.
Planos de expansão
O sucesso da Abrace
motivou diversas novas iniciativas de cultivo.
“Tenho notícia de
uns dez grupos que estão organizados, produzindo e distribuindo óleo no Brasil.
Tem gente no Paraná, no Mato Grosso do Sul, em Goiás, no Rio, em Brasília,
Recife, Natal… Então está bem distribuído”, diz o advogado Emílio Figueiredo
que dá apoio jurídico para alguns desses grupos. “No Mato Grosso do Sul, eles
são superorganizados, preparando para muita gente”, revela. Procurados, os
representantes desses grupos comerciais se recusam a falar com a imprensa. “O
segredo do negócio é o segredo”, argumentou um deles para recusar a entrevista.
A reportagem
detectou 17 associações já formadas ou em processo de constituição em 13
estados.
Todas as
associações consultadas têm planos de iniciar cultivos. No Rio de Janeiro, a
Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) tenta
viabilizar dois cultivos em parceria com a Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Um de 20 pés, para pesquisa botânica, e outro de 450, para atender
seus pacientes. Enquanto o projeto não sai do papel, a ONG mantém no seu site
um pop-up com a mensagem “A Apepi não vende nem doa óleo”. A diretora da ONG,
Margarete Brito, foi a primeira pessoa a conseguir uma liminar para cultivar em
casa e produzir óleo para sua filha, que tem CDKL 5, doença rara que causa uma
epilepsia de difícil controle.
Cidinha Carvalho,
outra mãe com autorização judicial para cultivar para sua filha e presidente da
Cultive, de São Paulo, tem se dedicado a ensinar outros pacientes a cultivar e
a produzir óleo em casa. “Mas a ideia é ter no futuro um cultivo para suprir as
famílias que não podem ter o próprio cultivo”, diz.
Já a Ama+me, de
Belo Horizonte, prepara um projeto de cultivo para enviar formalmente à Anvisa
no mês que vem. Neste mês, 24 associados declararam interesse em receber o
óleo, caso o plano seja aprovado.
Na semana passada,
o Laboratório de Análises Toxicológicas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) divulgou as instruções de um serviço gratuito e inédito no país
de análise de óleos artesanais que deve dar mais segurança aos pacientes que
recorrem à produção clandestina. Agora, eles podem levar seu produto ao
laboratório e saberem exatamente os teores de CBD e THC. “É uma ferramenta para
monitoramento farmacêutico da terapia”, diz a toxicologista Virgínia Carvalho,
responsável pelo projeto de extensão, batizado de Farmacannabis.
Após anúncio da Anvisa, usuários se preparam para batalha
Os representantes
das associações estão bastante desanimados quanto à perspectiva de terem
cultivos legalizados. O principal entrave seria a própria Anvisa, que prepara
regulamentação sobre o tema e deve apresentá-la em breve para consulta pública.
Numa entrevista ao
programa Fantástico, em 30 de abril, o presidente da agência, Jarbas Barbosa,
garantiu que a regulamentação daria “muito mais segurança jurídica e do ponto
de vista sanitário” às mães. Mas os representantes de pacientes não acreditam que
vá cumprir sua palavra.
Após uma reunião
com Barbosa em agosto, Margarete Brito, da Apepi, ficou desmotivada. Segundo
ela, “a regulamentação vai tratar apenas de óleos para comercialização” e a
autorização para cultivo vai “exigir o cumprimento de todas as etapas
necessárias para o registro de um medicamento”.
“A gente sabe que
isso custa muito dinheiro”, diz ela. “Ou seja: a regulamentação só vai atender
o interesse das indústrias que vão fazer óleo para vender na farmácia”, avalia.
Na reunião, os
representantes da agência afirmaram que preparam duas regulamentações: uma para
estabelecer critérios para cultivo de plantas proibidas e outra, mais
específica, para o plantio de Cannabis para uso medicinal. Procurada para
esclarecer dúvidas sobre as propostas e comentar o receio das associações de
serem “barradas” na regulamentação, a Anvisa recusou os pedidos de entrevista
da Agência Pública.
Óleo artesanal de cannabis, produzido clandestinamente no Brasil para fins medicinais. TARSO ARAÚJO/AGÊNCIA PÚBLICA |
Outra
preocupação são as empresas farmacêuticas estrangeiras. “Elas estão entrando
com vontade, promovendo eventos de divulgação de produtos e eventos de educação
médica de qualidade duvidosa, sem nenhuma fiscalização”, denuncia Juliana
Paolinelli, diretora de comunicação da Ama+me. “Tá uma bagunça geral.”
Segundo
Figueiredo, se a Anvisa não contemplar as associações na regulamentação em
debate, terá de enfrentar oposição na Justiça. “Já estamos nos preparando para
uma batalha de mandados de segurança. [A Anvisa] vai impor limites sanitários,
burocráticos, vai fazer exigências absurdas de segurança que as associações não
serão capazes de atender”, diz.
José
Godoy, do MPF-PB, lamenta a lentidão da Anvisa. “Eles têm há três anos um
parecer nosso recomendando a regulamentação do cultivo, sem andamento.” Para
ele, a falta de regulamentação fere o direito à saúde. “As principais vítimas
são os pacientes.”
Do
seu anonimato, os produtores garantem que não vão parar. “Fazemos algo que
ajuda as pessoas. Moralmente, não acho que esteja fazendo nada de errado. Ao
contrário, estamos ajudando centenas de pessoas, como o governo mesmo não trata
de fazer”, argumenta Nivaldo.
“O
fato de esses produtores estarem na ilegalidade é uma injustiça”, diz
Figueiredo. “E um decálogo do advogado diz: se alguma coisa é ao mesmo tempo
ilegal e injusta, temos que atacar a injustiça, e não a ilegalidade.”
* Nomes trocados para garantir o sigilo das fontes da
reportagem.
Esse texto é resultado do Concurso de Microbolsa de Reportagem
Maconha, realizado pela Agência Pública e Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania (Cesec), da Universidade Candido Mendes.
O VALOR DO THC
O debate sobre o uso medicinal da cannabis ganhou força graças ao uso de óleos ricos em canabidiol (CBD) para o tratamento de convulsões em pacientes com epilepsia de difícil controle. O primeiro estudo a comprovar esse potencial terapêutico foi realizado pelo psicofarmacologista brasileiro Elisaldo Carlini, da Unifesp, em estudo publicado em 1980. Mas a cannabis medicinal tem sido usada para tratar sintomas de diversas outras condições – dores crônicas, esclerose múltipla e náuseas causadas por quimioterapia são as mais bem comprovadas cientificamente – e muitas de suas propriedades terapêuticas são atribuídas ao THC. O princípio é conhecido pelo seu uso recreativo e causa os efeitos mais conhecidos – relaxamento, olhos vermelhos e aumento de apetite – mas também é anticonvulsivante.
É ele o principal componente dos óleos artesanais produzidos clandestinamente no Brasil, já que as variedades da planta são geralmente cultivadas para uso recreativo. O THC é o responsável pelo potencial da maconha para causar dependência, problemas cognitivos e de memória. Por isso, alguns médicos se recusam a prescrever óleos de maconha.
“O canabidiol (CBD) é mais aceito por causa da esperança de um perfil de menos efeitos adversos”, diz o psicofarmacologista Fabrício Pamplona, diretor científico da Entourage, empresa autorizada pela Anvisa a pesquisar os fins medicinais da planta. Segundo o cientista, “o THC é um anticonvulsivante mais potente que o canabidiol, mas, em doses altas, pode ter efeitos adversos. Em doses muito altas, pode até aumentar as convulsões.”
Com uma dosagem adequada, os efeitos do produto nacional são tão bons ou melhores do que do importado, segundo a farmacologista da UFPB Katy Gondim. Ela monitora mais de 50 pacientes que usam extratos clandestinos. “De modo geral, os benefícios são excelentes no caso das epilepsias de difícil controle”, diz Katy. “Os pacientes reduzem de forma muito significativa as crises convulsivas e reduzem o uso de anticonvulsivantes tradicionais, que são muito tóxicos para os rins e o fígado. Alguns chegam a abandonar completamente o uso dessas outras drogas.”
O neurologista Eduardo Faveret, chefe do Departamento de Epilepsia do Instituto do Cérebro, no Rio de Janeiro, também acompanha pacientes que usam com sucesso óleos ricos em THC. Mas recomenda que se misture o tratamento com canabidiol. “Existem diversos trabalhos mostrando que o CBD tem efeitos antipsicóticos e ansiolíticos que equilibram efeitos adversos que o THC pode causar em altas dosagens”, diz.
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