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transferência da área para a Funai estava acertada e em curso. As tratativas
foram iniciadas há mais de um mês em processo administrativo na Secretaria do
Patrimônio da União
Aldeia é destruída e incendiada durante o despejo de 67 famílias Kariri Xocó |
Por Renato Santana, do Cimi
O que não foi possível de ser retirado da aldeia pelos indígenas Kariri
Xocó de Paulo Afonso, sertão baiano, os tratores demoliram. A maloca de reza da
aldeia foi a primeira estrutura a ser destruída. Para impedir que os indígenas
retornassem, tudo foi incendiado – incluindo as plantações, em parte cultivada
pelas crianças. Enquanto a aldeia queimava, os 170 indígenas rumaram para uma
escola desativada há cinco anos, ladeada pelo pátio de terra batida de uma
Igreja, do outro lado da BR-423. Sem luz e água, passaram a madrugada
amontoados sobre sacolas, malas e trouxas de roupas.
A aldeia ficava às margens do Rio São Francisco e sob o Reino Encantado
da Cachoeira de Paulo Afonso. A reintegração de posse ocorreu na última
quinta-feira (25). Ao todo, moravam no local 67 famílias. Há quase dois anos
vivendo nesta retomada de dois hectares, os Kariri Xocó estruturaram uma aldeia
pungente que se esvaiu aos olhos de todos em poucas horas.
“Nesse momento me sinto muito triste. O despejo é triste. Você ver a
casa, o seu teto, uma vida feliz sendo acabada. A gente passar mais uma vez um
sufoco desse. Não é a primeira vez. No dia anterior, contamos por volta de uns
80 policiais, retroescavadeira. Tudo para demolir uma aldeia numa terra da
União. Esse governo, essa Justiça. Todo mundo vê o que está acontecendo, quem
são eles. Se pensa que vai ter Brasil fazendo isso com o povo indígena, se
engana”, diz Antonio Santos Kariri Xocó de Paulo Afonso.
A área, de 170 hectares no total, esteve antes abandonada durante 30
anos e pertence ao DNIT, portanto, da União. No entanto, o órgão federal
afirmou não ter interesse e a transferência para a Funai estava acertada e em
curso. As tratativas foram iniciadas há mais de um mês em processo
administrativo na Secretaria do Patrimônio da União (SPU).
Queimada da área onde os índios viviam |
Com este argumento, o Ministério Público Federal (MPF), a Defensoria
Pública da União (DPU) e a Advocacia-Geral da União (AGU), responsável pela
Procuradoria da Funai, pediram ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região,
em Brasília, que a suspensão de 45 dias da reintegração de posse requerida pela
UZI Construtora passasse a contar apenas depois de ouvidas testemunhas e
levando em consideração que uma solução foi encontrada pelo governo federal
para evitar o despejo.
Nesta quinta-feira, 25, o desembargador Kassio Marque, do TRF-1, manteve
a reintegração alegando, inclusive, que diferente do que ocorreu esta semana em
Redenção (PA) – onde dez trabalhadores rurais foram mortos pela polícia – o
procedimento vinha ocorrendo sem conflito e poderia seguir adiante.
Marque frisou no despacho, que no dia 24, quarta-feira, chegou a deferir
uma prorrogação de 30 dias do despejo, atendendo ao pedido do MPF, DPU e AGU.
No entanto, por conta dos protestos em Brasília, duramente reprimidos pela
Polícia Militar, o tribunal foi evacuado e não houve tempo hábil para que a
decisão fosse publicada. Na manhã do dia 25, o juiz João Paulo Pirôpo de Abreu,
da Justiça Federal de Paulo Afonso, que atuou de forma contumaz pelo despejo
até o seu desfecho, informou ao desembargador que tudo estava correndo bem na
reintegração iniciada um pouco antes da conversa. Não se fazia necessária a
suspensão.
A reintegração da área pública, na verdade, beneficiou uma empresa
privada. De acordo com o defensor federal Átila Dias, “ao contrário do que
alega a Uzi Construtora (representada por dez advogados), que afirma ser
cessionária e ter a posse do terreno da União, moradores da localidade afirmam
que há mais de 20 anos o terreno não possui destinação social nem econômica”.
O local, conforme moradores do entorno, era usado para a prática de
crimes. Há relatos de que a pequena vila abandonada, então em escombros antes
da chegada dos indígenas, era usada para consumo de drogas, estande de tiros,
estupros, desova de corpos. Conforme os autos, a Superintendência do Patrimônio
da União foi convocada para prestar depoimento à Justiça, no curso do processo,
e confirmou que o terreno é de propriedade da União.
Acontece que os autos processuais – desaparecidos, de acordo com o MPF,
DPU e Cimi, até a execução da reintegração, na quinta, 25 – não foram
devolvidos à Subseção Judiciária de Paulo Afonso. De tal modo que, para as
instituições envolvidas na defesa dos indígenas e a própria comunidade, o prazo
de 45 dias de suspensão concedido pelo TRF-1 sequer havia começado a correr.
“Consideramos uma traição da Justiça. Como um processo desaparecido está
valendo? A Funai não sabia do despejo. Não tivemos tempo de defesa. Até
segunda, terça-feira existiam dúvidas se o despejo ia ocorrer ou não. Se era
verdade ou boato. Estávamos felizes porque a terra ia ser transferida para
Funai, tudo direitinho. De repente esse golpe, sem a gente se preparar para
receber”, declarou em prantos o cacique Jailson dos Santos Kariri Xokó de Paulo
Afonso.
Para a DPU, MPF e AGU, o prazo da execução do despejo deveria ser
indeterminado para que os trâmites legais de regularização fundiária da terra
pudessem ocorrer. Todavia, propuseram ainda medida alternativa: “Mais 90 dias a
fim de que as instituições envolvidas, após o devido acesso ao processo,
consigam elaborar o plano de proteção à comunidade vulnerável”, diz o defensor
Átila Dias. Ao lado dos indígenas durante todo o despejo, brigando até o fim
para a reversão da ordem, o Procurador da República em Paulo Afonso, Bruno
Jorge Rijo Lamenha Lins, está convicto de que além de terra da União, “nos
autos há dúvidas sobre qual a área a ser reintegrada”.
Uma semana antes da reintegração, os Kariri Xocó de Paulo Afonso
estiveram com o juiz de primeira instância João Paulo Pirôpo de Abreu, que
mesmo entendendo que a área pertence à União, e silenciando diante da dúvida
pertinente quanto à área a ser reintegrada, afirmou se tratar de uma
possessória, ou seja, a construtora apresentou documentos de posse e que certo
ou errado, a função do juiz é decidir; e a decisão dele estava dada.
“É preciso dizer que agora esse juiz está dizendo que foi ele quem
conseguiu a escola e a igreja para ficarmos. Não é verdade, quem olhou pela
gente nisso foi o Dr. Bruno (MDF) e a Dra. Luciana Cury (DPU)”, protesta Denise
Kariri Xocó de Paulo Afonso.
“O que ocorreu foi uma das maiores injustiças que um povo pode viver.
Foram despejados de seus lares, perderam suas matas, perderam suas plantações e
tiveram suas casas derrubadas e queimadas, numa ação truculenta e arbitrária da
polícia e de um juiz racista, cruel, anti-indígena”, ataca Alzení Thomáz, da
Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP).
Indígenas Kariri Xocó de Paulo Afonso |
O missionário indigenista Ângelo Bueno, do Conselho Indigenista
Missionário (Cimi) Regional Nordeste, diz que ao chegar em Paulo Afonso
encontrou um ambiente “muito desolador, de muita tristeza e alguma esperança,
pois o MPF informou que vai recorrer para garantir que eles voltem”.
De acordo com os Kariri Xocó ouvidos, e que pedem para não ser
identificados temendo represálias, há denúncias de que foram humilhados,
acusados de serem falsos índios e chamados de bichos por integrantes não
identificados da equipe que estava com as forças policiais durante o despejo. A
comunidade encaminhou a denúncia às autoridades competentes, e também presentes
na ação policial ao lado de organizações de direitos humanos. Para Alzení, da
CPP, foi uma das mais truculentas e absurdas reintegrações que ela já
testemunhou em décadas de atuação nas Pastorais do Campo (CPP, Cimi e CPT).
Os indígenas estavam prestes a ter segurança alimentar garantida com a
domesticação do território. Macaxeira, milho, feijão de vários tipos,
hortaliças e legumes, frutas variadas, galinha de capoeira e o peixe do rio. “A
comida estava garantida até o final do ano. Nossa medicina tinha farta também,
vamos ver como ficou depois do fogo”, diz o indígena José Francisco dos Santos.
A Funai e o MPF, além de recorrer da decisão, irão tomar medidas para
garantir que o povo tenha acesso a políticas públicas. De acordo com o cacique
Jailson, o objetivo é seguir na luta pelo território em que estavam – não
aceitam ficar na área em que se encontram. “Por que a gente não pode ficar na
terra que está na frente da nossa, só faz atravessar a rodovia? Porque a gente
não quer qualquer área, queremos a habitada pelos nossos Encantados e que
possibilite a nossa cultura, a vida das gerações futuras. Terra de índio é
assim. Onde estávamos tem tudo isso, locais de ritual, medicina, plantação, tá
perto da cachoeira sagrada, do rio. E é bom que saibam: não queremos o que é
dos outros porque a terra sempre foi nossa”, explica.
Congresso em Foco
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